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Repostagem - Velharias
Velharias...

Vi a porta do
porão, velha, quebradiça, porém dura e protetora, daquelas que realmente
guardam algo... Abri-a vagarosamente, mas que breu, que não vi nada... Balancei
as mãos nos ares seguidas vezes, em busca do acendedor, daqueles que ficam
pendurados por um fio... só achei a ponta do fio esbugalhada... Fui à cozinha,
peguei uma vela e a acendi com um fósforo... De volta à entrada do porão, fui
descendo a escada vagarosamente, nada se iluminava a mais de um palmo de
distância de minha face... Estava
temerosa em cair... Os degraus vacilavam, a escada rangia, eu respirava de
forma marcada, com um medo secreto de que caso eu respirasse normalmente, a
escada porosa abaixo dos meus pés se desfizesse em pó e cupins. Mas, continuava
a descer... Parecia não ter fim, chegava eu ao inferno, mas nunca ao fundo do
porão...
Enfim, terra
firme. Não tão firme assim, as tábuas que tomavam conta do chão não me
forneceram segurança alguma, meus pés descalços me mostravam que ali era oco,
teria isso fundo, onde eu poderia parar caso o chão abaixo de mim se
desfizesse?
Olhei ao redor, a
luminosidade da chama da vela alcançava pouco espaço, a escuridão consumia a
luz, parecendo querer engolir as chamas, como se tudo conspirasse para que
segredos guardados ali permanecessem obscuros no fundo daquele breu... A poeira que parecia parada a anos, fugia dos
cantos e gretas, e dançava ao meu redor, como que querendo me sufocar... eu mal
podia me mover, as teias das aranhas emaranhadas, emboladas e densas, impedindo
minha livre locomoção, e fiquei surpresa, não vi as construtoras daquele maravilhoso
emaranhado de fios, parece que até elas se foram, em busca de lar mais adequado
e menos obscuro.. As ootecas, como casas abandonadas a anos, juntas, jogadas,
presas, escoradas, se despedaçando e perdendo-se no tempo... Caixas de papelão
por todos os lados, rasgadas e roídas por ratos, com velharias
desabando por
cima e por todos os lados... Estantes de livros velhos roídos por traças... E
aquele cheiro de coisa velha da casa da vóvó macabra acentuado mil vezes, de
queimar o nariz e arder os olhos...Diários de mentes
confusas e atordoadas, que gemiam em páginas entreabertas, onde podia-se
observar desenhos feitos e malfeitos,letras perfeitas e arredondadas,
emaranhados de garranchos, entre graça e desespero, alegria e dor, páginas
amarelas e antigas, meio roídas, parecendo que se desfazeriam ao mínimo toque,
mas, pura ilusão, a força das palavras que preenchiam as páginas era tanta, que
precisaria mais que chuva e fogo para tornarem aquela escrita apagada,
esquecida, inexistente... Percebi isso e muito mais estando estagnada no meio
daquele
porão, viajando em cada partícula de poeira, me desprendendo de mim
mesma e vagando em meio àquela imensidão de lembranças de ninguém, sendo também
um nada, uma partícula de poeira, porque, nada melhor do que ser para poder
tentar compreender...Poderia me perder
ali, pra sempre, a bisbilhotar lembranças alheias, rir com aqueles fantasmas,
chorar com seus dramas e nostalgias, sonhar junto a eles com uma vida que não
mais poderia ser vivida, e...quase que fiquei mesmo, pra virar pó ali também, e
ali perecer, como muitos o fizeram antes de minha
estadia... mas consegui me
lembrar que estava ali por um motivo específico, em uma busca singular, o
relicário perdido. A princípio me enlouqueceu a ideia de ter que procura-lo em
meio àquele caos de coisas, mas bastou mentalizar o que queria, e, como em
magia, o local o mostrou a mim onde estava o objeto do meu desejo... Do outro
lado do porão, havia escondido em meio à penumbra, um móvel negro, parecido com
um guarda roupa feito em ébano. Mas, só me foi possível vê-lo por que das
fendas de suas duas portas entreabertas surgia uma certa cintilância prateada
que ia e vinha, piscando para mim, me chamando, me puxando, de uma atração
tremenda que não podia ser outro lugar, senão aquele... Comecei a me mover,
vagarosamente, para me desembaraçar dos fantasmas que tentavam me segurar, para
não pisar nos pregos soltos e enferrujados que faziam armadilhas por todo o
caminho... Tábuas pregadas ao léu,
passando as pontas dos dedos dos pés senti o chão irregular, quebradiço e
traiçoeiro, se eu caísse, nem queria pensar nessa possibilidade...
Ouvi algo se
mexendo, tentei achar o que era, e, era melhor não ter visto, havia uma
ratazana horrenda, um ser abissal daquela escuridão de porão, ela tinha os
olhos brancos, acho que era cega, e farejava em minha direção... então,
acredito que num senso instintivo rosnei na direção em que ela estava seguidas
vezes, o animal, creio que pensou que eu era louca e saiu andando vagarosamente
em direção a um buraco no canto da parede de madeira, olhou para trás
indiferentemente, e, entrou e sua toca...
A surpresa de
encontrar algo vivendo por ali passou, e depois de alguns segundos me
encontrava junto à porta, o guarda roupa era um móvel magníficos, daquele que
destacaria numa casa antiga e que qualquer museu de antiguidades se orgulharia
em ter....
Mesmo sendo iluminado pela luz fraca de minha vela se mostrava ser
uma peça magnífica, exuberante em tamanho e forma, e rico em detalhes que algum
escultor de mente inspirada esculpiu na madeira feito poesia fina e rara
esculpida em papel...
A ansiedade me
cansava, abri a porta com um pouco de receio, o brilho diminuiu... O guarda
roupa estava repleto de tesouros perdidos, eu, fui buscar o que me cabia
encontrar, e, quem sabe cada pessoa também iria lá à procura de seu tesouro...
Haviam
caixinhas de música das mais variadas formas, livros com capas de couro,
outros com capas
de veludo, tiaras e coroas com belíssimas pedras incrustradas,
anéis, brincos, cordões, pulseiras e outras joias caindo de um baú, estátuas
que representavam deuses e deusas, anjos, mulheres e homens extremamente belos
em sua nudez e gárgulas horríveis, animais empalhados, amostras de ervas em
vidros, não sei se venenos ou remédios, mas, tudo depende da dose... dos vidros
nem consigo falar, eram grandes, pequenos, de formas que nem nunca vi, cores estranhas,
com coisas que nunca encontrei no mundo mergulhadas em líquidos esquisitos...
rosas secas e despedaçadas, como que lembranças de uma juventude que há muito
já se passou, presentes de um amor que já não existe mais, roupas enigmáticas e
velhas, vestidos de rainhas, trapos de camponesas, armaduras de cavalheiros,
chapéus e laços de caubóis,
túnicas encardidas de sacerdotes, sobretudos negros
e longos de homens misteriosos, lenços de donzelas e piratas entre outras
centenas de vestimentas, a quem teriam pertencido todas essas velharias?
Pergaminhos que deviam conter muitos mistérios, potes de tintas, pincéis cheios
de detalhes desenhados e esculpidos em seu corpo, e eu pensei, são como joias
que produzem joias, ah... os quadros, muitos quadros, pinturas, quadros de
pedras, de conchas, de areia, de madeira... quadros
que davam medo, outros que
traziam alegria, paisagens, naturezas mortas, flores vívidas, infernos e seus
demônios, anjos no céu, animais, damas em fuga, cavalheiros apaixonados, cestas
de flores e frutos, árvores secas e carregadas, castelos, casas simples de madeira,
de tudo que já existiu e que se pode imaginar haviam pinturas... eu passaria
dias se fosse descrever os detalhes de tudo que pude ver e ouvir... sim, ouvi
sons... pássaros de muitas espécies que nem conhecia, animais que rosnavam,
outros que rugiam, eram tantas cores matizadas que
enlouqueceriam qualquer
sentido, crianças chorando, pessoas rindo, gritos de seres em agonia, gemidos
de amantes em prazer, som de palmas por congratulação a algo bem feito, nomes
sendo sussurrados, outros sendo berrados, ouvi orquestras, ouvi o som de vários
instrumentos musicais e isso agradou meus ouvidos, pessoas cantando, cantavam
sozinhas, cantavam juntas, músicas depressivas e outras esperançosas, ouvi o
som do vento, das folhas dos
galhos das árvores balançando ao vento, senti o
cheiro das flores que o vento trazia, um odor melhor que outro, doces,
cítricos, florais, frutais, amadeirados, sedutores, enjoativos, mas, todos
atraentes a alguém de alguma forma... Senti cheiro de comidas, de uns gostei,
doutros não, mas, deu fome, ouvi o zunido de mil abelhas e o doce cheiro do mel
selvagem, me deu vontade de ir lá provar. O odor de bebidas alcoólicas era
fascinante, o hidro mel me deu água na boca, era daquele caseiro, licores de
tantos sabores que quase me perdi, os vinhos eram antigos e diferentes de tudo
que conheço e tinha tanto mais quanto se pode imaginar de bebidas ... Senti o
cheiro de fazenda, curral, vaca, cavalo, couro velho, capim amassado, leite
tirado na hora... Cheiro de cidade, tudo misturado, fumaça que saia dos
escapamentos dos
automóveis e, desse odor não gostei... Ouvi o som das águas,
sim das águas... ouvi as ondas baterem nas pedras no litoral e, senti o cheiro
da maresia, e o som que a gente ouve colocando a concha de encontro ao ouvido...
ouvi o som da correnteza dos rios, e o cheiro bom de água doce... ouvi o som belo
da cachoeira, água caindo bruscamente batendo nas pedras, sem parar, som alto,
e senti o cheiro das pedras, dos musgos e da floresta que cercava a cachoeira
e, o som das águas me deixou em grande estado de êxtase e hesitação, queria ir
embora para o reino das águas, mas, maldição! Aquele não era meu tesouro e eu
poderia por lá me perder para sempre... aquele guarda roupa era mágico, por
dentro tinha um espaço infinito, era um portal para sabe-se lá onde, oh!
Sabe-se
lá sim, era a porta para os sonhos de quem gosta de sonhar e quer realizar,
e a porta da agonia, para quem gosta de sofrer, e deseja uma vida de
sofrimento, afinal, para quem gosta da dor, nada melhor que a dor eterna... Por
alto, parece até ser algo bom, mas, não era, e representava uma maldita armadilha
para pessoas indecisas... Quem lá fosse
sem ter certeza do que buscar, poderia se perder naquele mundo de sonhos
alheios por cair na simples magia e admiração
momentânea por algo que não era
seu, e ficar preso num quadro de outro, e se tornar uma escultura, ou o espinho
de uma rosa, ou ser a pedra onde a água bate... quase fiquei, mas, consegui
novamente me lembrar a que estava lá...
O relicário,
aquele que nem foi preciso procurar, se apresentava diante de meus olhos e
pensamentos antes de todos as outras coisas... me encantou à primeira vista,
era uma linda caixa de prata envelhecida, de mais ou menos um palmo de largura
e quatro dedos de altura, toda trabalhada, em segundos pude notar um desenho de
algo que seria uma ventania, e em meio à isso, flores de diferentes espécies,
alguns mini pássaros voando por aqui e por ali. Era como um mini jardim, e,
encima estava o céu, com sol, lua, e muitas pequeninas estrelas... Das pequenas
árvores desenhadas as folhas caíam, o sol ardia, flocos de neve vinham daquele
céu, e as flores enchiam o local com suas borboletas a rondar... Interessante, vi as quatro estações misturadas
em um único desenho. Peguei a caixa na mão com muito cuidado, então senti meus
pés se molharem de uma água fria que gelou a ponto de doer, depois ficou morna
e depois esquentou a ponto de queimar... Veio um vento agradável, depois
esfriou de forma que me deixou batendo os queixos, depois veio um vapor gostoso
que fez o frio passar, mas esquentou a ponto de me fazer suar, por mim passaram
folhas e flores que se engancharam em meu cabelo, senti seu perfume, e ouvi
pássaros sentindo o bater de asas ao lado de minhas orelhas, tudo isso
juntamente à todas aquelas sensações... estava quase a ponto de surtar e deixar
cair o relicário, quando tudo passou, acho que, era meu teste... Interessante,
ao toque pude sentir as quatro estações separadas e misturadas em mim mesma, e,
percebi que eu às sou, às faço, às represento...
Resolvi que já era
tempo de abrir a caixa e levantei a tampa que rangia, vagarosamente, então, reinou
o silencio, era como um vácuo, senti o ar ser sugado, e, tudo parou, eu parei,
o tempo parou... No relicário estava tudo guardado: lá cabia a paz, ele
encolheu até não caber mais, com tantas guerras, violência e tanta maldade na
mente humana, a paz ficou mínima... No relicário havia amor: um homem o roubou
na calada da noite, enfiou no seu bolso sujo e foi embora sabe-se lá para
onde... No relicário descansava a
felicidade: ela estava muito bem guardada a sete chaves, todas as fechaduras
foram quebradas, as portas despedaçadas e, despiram-na sem dó... No relicário
as lembranças habitavam e circulavam, lá elas eram boas, então, jogaram uma
maldição e tudo virou fumaça... O
relicário caiu em esquecimento no fundo desse guarda roupa velho e, até pouco
tempo atrás, sabia-se lá onde ele estava, até que tive um sonho, e, essa se tornou
minha lenda pessoal, deu trabalho, mas cheguei lá, e, minha missão era
restaurar tudo que foi diminuído, roubado, perdido, amaldiçoado, destruído,
maltratado...
Então paro para
pensar, de que adianta?
Salva-se a carcaça
(uma caixa de prata velha que range) mas a alma está ferida: falta paz para
preencher, o amor foi roubado, a felicidade foi invadida e violentada, as
lembranças boas não existem mais – e porque eu me arriscaria a resgatar o
que parece não ter volta?
Fui acordada, e fiquei
aliviada com o sol brilhando e o cheiro de almoço na casa dos vizinhos...
Acho que eu deveria ter
ido parar num sonho alheio, escolhido ficar perdida no reino das águas, mas,
passou, e o que passou não volta mais...

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