Velharias - Parte 1

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Vi a porta do porão, velha, quebradiça, porém dura e protetora, daquelas que realmente guardam algo... Abri-a vagarosamente, mas que breu, que não vi nada... Balancei as mãos nos ares seguidas vezes, em busca do acendedor, daqueles que ficam pendurados por um fio... só achei a ponta do fio esbugalhada... Fui à cozinha, peguei uma vela e a acendi com um fósforo... De volta à entrada do porão, fui descendo a escada vagarosamente, nada se iluminava a mais de um palmo de distância de minha
face...  Estava temerosa em cair... Os degraus vacilavam, a escada rangia, eu respirava de forma marcada, com um medo secreto de que caso eu respirasse normalmente, a escada porosa abaixo dos meus pés se desfizesse em pó e cupins. Mas, continuava a descer... Parecia não ter fim, chegava eu ao inferno, mas nunca ao fundo do porão...
Enfim, terra firme. Não tão firme assim, as tábuas que tomavam conta do chão não me forneceram segurança alguma, meus pés descalços me mostravam que ali era oco, teria isso fundo, onde eu poderia parar caso o chão abaixo de mim se desfizesse?
Olhei ao redor, a luminosidade da chama da vela alcançava pouco espaço, a escuridão consumia a luz, parecendo querer engolir as chamas, como se tudo conspirasse para que segredos guardados ali
permanecessem obscuros no fundo daquele breu...  A poeira que parecia parada a anos, fugia dos cantos e gretas, e dançava ao meu redor, como que querendo me sufocar... eu mal podia me mover, as teias das aranhas emaranhadas, emboladas e densas, impedindo minha livre locomoção, e fiquei surpresa, não vi as construtoras daquele maravilhoso emaranhado de fios, parece que até elas se foram, em busca de lar mais adequado e menos obscuro.. As ootecas, como casas abandonadas a anos, juntas, jogadas, presas, escoradas, se despedaçando e perdendo-se no tempo... Caixas de papelão por todos os lados, rasgadas e roídas por ratos, com velharias desabando por cima e por todos os lados... Estantes de livros velhos roídos por traças... E aquele cheiro de coisa velha da casa da vóvó macabra acentuado mil vezes, de queimar o nariz e arder os olhos...
Diários de mentes confusas e atordoadas, que gemiam em páginas entreabertas, onde podia-se observar desenhos feitos e malfeitos, letras perfeitas e arredondadas, emaranhados de garranchos, entre graça
e desespero, alegria e dor, páginas amarelas e antigas, meio roídas, parecendo que se desfazeriam ao mínimo toque, mas, pura ilusão, a força das palavras que preenchiam as páginas era tanta, que precisaria mais que chuva e fogo para tornarem aquela escrita apagada, esquecida, inexistente... Percebi isso e muito mais estando estagnada no meio daquele porão, viajando em cada partícula de poeira, me desprendendo de mim mesma e vagando em meio àquela imensidão de lembranças
de ninguém, sendo também um nada, uma partícula de poeira, porque, nada melhor do que ser para poder tentar compreender...

Poderia me perder ali, pra sempre, a bisbilhotar lembranças alheias, rir com aqueles fantasmas, chorar com seus dramas e nostalgias, sonhar junto a eles com uma vida que não mais poderia ser vivida, e...quase que fiquei mesmo, pra virar pó ali também, e ali perecer, como muitos o fizeram antes de minha estadia... mas
consegui me lembrar que estava ali por um motivo específico, em uma busca singular, o relicário perdido. A princípio me enlouqueceu a ideia de ter que procura-lo em meio àquele caos de coisas, mas bastou mentalizar o que queria, e, como em magia, o local o mostrou a mim onde estava o objeto do meu desejo... Do outro lado do porão, havia escondido em meio à penumbra, um móvel negro, parecido com um guarda roupa feito em ébano. Mas, só me foi possível vê-lo por que das fendas de suas duas portas entreabertas surgia uma certa cintilância prateada que ia e vinha, piscando para mim, me chamando, me puxando, de uma atração tremenda que não podia ser outro lugar, senão aquele...
Comecei a me mover, vagarosamente, para me desembaraçar dos fantasmas que tentavam me segurar, para não pisar nos pregos soltos e enferrujados que faziam armadilhas por todo o caminho...  Tábuas pregadas ao léu, passando as pontas dos dedos dos pés senti o chão irregular, quebradiço e traiçoeiro, se eu caísse, nem queria pensar nessa possibilidade...
Ouvi algo se mexendo, tentei achar o que era, e, era melhor não ter visto, havia uma ratazana horrenda, um ser abissal daquela escuridão de porão, ela tinha os olhos brancos, acho que era cega, e farejava em minha direção... então, acredito que
num senso instintivo rosnei na direção em que ela estava seguidas vezes, o animal, creio que pensou que eu era louca e saiu andando vagarosamente em direção a um buraco no canto da parede de madeira, olhou para trás indiferentemente, e, entrou e sua toca...
A surpresa de encontrar algo vivendo por ali passou, e depois de alguns segundos me encontrava junto à porta, o guarda roupa era um móvel magníficos, daquele que destacaria numa casa antiga e que qualquer museu de antiguidades se orgulharia em ter.... Mesmo sendo iluminado pela luz fraca de minha
vela se mostrava ser uma peça magnífica, exuberante em tamanho e forma, e rico em detalhes que algum escultor de mente inspirada esculpiu na madeira feito poesia fina e rara esculpida em papel... 

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